Caminho de Santiago – maio de 1996 – minha primeira noite no meu primeiro Caminho.
Embora Saint Jean de Pie de Port – encravada aos pés dos Pirineus seja pequenina e aconchegante, para mim: “tudo soava estranho, com gente esquisita” (lembra Eduardo & Monica?) – minha insegurança era muito maior e mais sombria que a majestosa e imponente cadeia de montanhas que eu haveria de transpor já na manhã seguinte.
Ao meu lado – sofrendo e inquieto- um cão com olhar lúgubre de um cego esmoleiro fazia par com seu dono – um tipo francês – soube pela rádio “peregrina” que vinham caminhando desde Paris e seu amigo estava com as patinhas desgastadas necessitando descansar pelo menos uns oito dias para que os remédios pudessem fazer efeito e assim reconstituir a pele da sola de suas patas que sangravam como se fosse uma pestilência sem fim.
Juntos – tinham vivido momentos de glória e desdouro transportando o sonho de chegar à Santiago. Até Saint Jean caminharam cerca de trinta dias para vencer os mais de 800 km que a separam de Paris – derrubando-os um a um e sempre dando um passo de cada vez.
Estavam ainda na metade do Caminho. Senti antes do meu primeiro passo que a perseverança é uma longa jornada e gaguejando a golpes de pavor sussurrei ao meu cajado:
__Parece que caminhar é como reinventar a vida atravessando um regime de penúrias!
Vestidos naquela mísera carne vi que o sofrimento do seu dono era como um dragão do nada, sob a culpa de sua interminável vigília esmagada pela dor do amigo – uma dor calada, doída, muito maior que dor de jejum; Acho até que se o francês pudesse, sairia latindo cruzando paisagens imaginárias gemendo e empurrando o tempo, até mergulhar no delírio e sentar-se no trono da cura alheia.
Como um intruso eivado de curiosidade perguntei se naquele estado, conseguiriam chegar à Santiago.
Respondendo sem responder, calçou um ar virtuoso de estipêndio dominical e sorriu um sorriso leve:
Seguiriam com a devoção de quem se aluga para sonhar – sendo um, cajado para o outro!